OS TIPOS DE RUA: NOS BAS-FONDS DA VIDA
Olavo Bilac escreveu em Ironia e Piedade: “Não ríamos da celebridade dos tipos de rua! É uma celebridade de motejo e assuada, mas essencialmente, vale tanto quanto os outros, de entusiasmo e aplauso”. Toda cidade tem os seus “tipos de rua”, que ficam na memória da população local e são geralmente mencionados quando se evocam lembranças do passado. Atualmente já não provocam o motejo de transeuntes, como outrora. E o que tinham em comum esses tipos de rua nos bas-fonds da vida? No início do século XX, eram em sua maioria negros e mulatos, descendentes de escravos, indivíduos marginalizados do processo formal de trabalho. Eram tipos que provocavam a ironia de uns e a piedade de outros. Em Amparo havia a “Nega da Trouxa” e atualmente em Mury circula pela antiga estrada de ferro a Dona Maria.
Acácio Ferreira Dias, no segundo volume de “Terra de Cantagalo” fez uma interessante recolha desses tipos de rua da cidade de Cantagalo, do início do século XX. Segundo ele, eram parias desgraçados, nepropatas, paranóicos, seres mórbidos, farrapos humanos que no caos se debatem estonteados, sem razão e sem vontade. Autômatos conduzidos pela mão fatal da desgraça, praticam desatinos, caminham a esmo no desarranjo das faculdades mentais, divagando em um mundo à parte num mutismo aparvalhado em sua vesania. Antonio Maluco, português, 38 anos, alto, espadaúdo, barba crescida, cabelos hirsutos e sempre despenteados, pendia sempre na boca uma bagana de palha de milho e fumo picu. Rachador de paus roliços, fazia esse serviço em troca de um almoço, um café com pão e cobrava muito pouco por seu serviço. Na primeira década do século XX, em Cantagalo, as casas ainda eram servidas pelo fogão a lenha. Consequentemente, havia a profissão de condutor e rachador de lenha. Antonio Maluco, na faina do trabalho não cessava em gritar em um monólogo incessante: “Oh! Que grandes cães!” ou então, “Essas mulatinhas de hoje querem passar por brancas.” Mas a quem ele dirigia esses impropérios? Pés descalços e negros de sujeira, caminhava sempre a passos largos, carregando aos ombros, como um fuzil, o machado amolado, sua ferramenta de trabalho, o seu ganha pão. A população o explorava por sua labuta de trazer a lenha e rachá-la, e o que ganhava pelo seu trabalho nem pobre queria receber como esmola. A miséria que lhe pagavam consumia em “martelos” de cachaça e daí a garotada impiedosa apupava-o, chamando-o de Antonio Maluco. Voltava-se irritado contra a garotada, xingando-lhes as mães e dando bananas, enquanto seguia para não se sabe onde. Muitas vezes, quando se excedia, curava a carraspana passando a noite na delegacia. No ano de 1907, o corpo de Antonio Maluco foi encontrado em adiantado estado de decomposição no porão da residência do padre Veiga, que o reverendo lhe cedia em troca da lenha.
Dona Veridiana. Bom Jardim - RJ
Maria Vira-beco, negra pernambucana, de vida desregrada quando moça era prostituta do alcouce do Beco do Carvalho. O beco, escuro e insalubre, iluminado por combustores de querosene, era um lugar perigoso que reunia a flor da malandragem, os praças do destacamento policial e o baixo meretrício. Não havia uma só noite em que os moradores próximos ao local não fossem acordados pelo sururu dos frequentadores do local. Maria vira-beco fora na flor da juventude conhecida pelo vulgo como Mariquinhas arroz-doce, uma linda cabrocha. Apaixonando-se por um “bamba” da zona e vendo-se desprezada, ateou fogo às vestes transformando-se desde então em um farrapo humano. Andava pelas ruas com um enorme chapéu de palha todo esburacado, com um cigarro ou cachimbo de barro no canto da boca, carregando os seus molambos em uma pequena cesta de taquara. Dizia ter sido escrava de “Nho, Nhô”, barão de Cantagalo. Ao lado das amigas de infortúnio como Flausina, Maria Barulho e Pão de Pataca, nas rodas de batuque em comemoração aos 13 de maio(1888), data abolição da escravidão no Brasil, dava vivas a princesa “Isabé”. Envelhecida e senil, era habituée na ronda aos defuntos. Velava-os a noite inteira e resmungando uma cantoria exótica, traçava no ar sinais cabalísticos ao redor da câmara mortuária, beijando de vez em quando as mãos e os pés do cadáver.
A "Nega da Troxa", Amparo, Nova Friburgo(RJ)
Moradora de rua, anônima, Nova Friburgo(RJ)
Já Tia Ana veio moça para o Brasil como escrava e trabalhou para o sinhô barão(não diz qual) até a lei áurea que libertou os escravos. “Bença, tia Ana!” diziam os transeuntes. A velha negra, vergada sob o peso dos anos e da escravidão recentemente extinta, retrucava: “Zus Cristo abençoe nhô-nhô! Uma esmolinha para a véia, meu sinozinho.” Ninguém negava esmola a velha escrava, arrimada ao seu tosco bordão. Tia Ana, dizia na roda de curiosos, que foi capturada no litoral da Guiné, jogada num porão de navio negreiro e embarcada para o Rio de Janeiro. Dizia que na juventude fora moça bonita e o pai a vendera em troca de rolo de fumo a um “sinhô” português, homem mau que a prendera com correntes. Falava sobre o tronco, onde os senhores prendiam os escravos, chicoteavam-lhes as costas, mandando a seguir lavar as chagas abertas, com água e sal.
Fica assim o registro dos tipos de rua que marcam a memória local. Segundo Magali Gouveia Engel os tipos de rua eram personagens cujas trajetórias de vida se desenrolavam nas fronteiras entre a loucura, a embriaguez, a mendicância e a vadiagem e conseguiram preservar as vivências e convivências proporcionadas pela liberdade das ruas.
Asilo de Cantagalo, foto das primeiras décadas do século XX município do Rio de Janeiro.
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