quarta-feira, 1 de maio de 2013

A TRINDADE TEUTÔNICA

A ERA INDUSTRIAL NO LIMBO DA HISTÓRIA

 Julius Arp, o industrial alemão timoneiro das indústrias em Nova Friburgo. Foi ele quem estimulou Maximilianus Falck e Otto Siems a instalar as fábricas Ypu e Filó, respectivamente.
 
No dia 11 desse mês de junho, um anúncio no jornal O Globo trazia os seguintes dizeres:“Rendas Arp. Fundada em Nova Friburgo pelo Conselheiro Peter Julius Ferdinand Arp, imigrante alemão, a Fábrica de Rendas Arp completa, neste sábado, 100 anos de existência. Líder no segmento de bordados no Brasil(...) a empresa é administrada pela 5° geração da família Arp(...)demonstra pelo seu centenário uma prova de superação. Queremos partilhar com nossos clientes e funcionários o sucesso desses 100 anos”. Confesso que achei o  anúncio simplório em se tratando do centenário de uma empresa no qual trabalharam cinco gerações de friburguenses. Merecia semelhante anúncio no jornal local. Aos friburguenses que desconhecem a sua história, o fundador da Rendas Arp, Julius Arp, além da importância de ser o primeiro industrial, foi igualmente o timoneiro de outras indústrias nos ramos têxtil, acessórios em couro e metalúrgica, que se instalaram ao longo da primeira metade do século 20, em Nova Friburgo. A instalação dessas indústrias provocou uma ruptura na história de Nova Friburgo e merecia melhor atenção e reflexão sobre essa rica passagem. Não desejo aqui tecer preito ao capitalismo nem colocar os industriais alemães como os grandes benfeitores do município. Sabe-se da exploração do trabalho e do conflito de classes, motor da História, que o capitalismo gera, mas apenas gostaria de lembrar esse importante momento histórico. Não vi a Associação Comercial e Industrial de N.F. fazer qualquer menção sobre essa data. Os historiadores João Raimundo de Araújo e Ricardo da Gama Rosa Costa publicaram em AVS, em maio, por ocasião do aniversário da cidade, duas interessantes matérias sobre o assunto, “Assim se passaram 100 anos” e “Cem Anos de Lutas Operárias em Nova Friburgo”, respectivamente. A indiferença do poder público municipal e de outras instituições é simbolizada no Pró-Memória, fechado desde novembro de 2010, onde as autoridades fazem ouvidos moucos aos apelos dos historiadores sobre a sua abertura. Nem a linha da “Sorbonne” da Câmara Municipal se sensibilizou a tal apelo. Mas isso é outra história.
                                   Maximilianus Falck, proprietário da Fábrica Ypu S.A.

 A representação da presença alemã em Nova Friburgo é vinculada ao segmento industrial. A partir de 1911, empresários alemães implantaram indústrias têxteis, artigos em couro e metalúrgicas, colocando Nova Friburgo na Era industrial. Peter Julius Ferdinand Arp, primus inter pares, Maximilianus Falck e Otto Siems compunham, de acordo com o jornal O Friburguense, de 28 de abril de 1935, a Trindade Teutônica, os fundadores das “colméias de trabalho”. Julius Arp, Maximilianus Falck e Otto Siems inauguraram as fábricas de Rendas Arp, Ypú e fábrica Filó, respectivamente. Esses empresários eram vistos como representantes do “primoroso povo germânico” e como os responsáveis por uma nova Era, em Nova Friburgo. O município passa da representação de uma bucólica cidade veranista para uma cidade industrial.
Peter Julius Ferdinand Arp(1858-1945) nasceu na Alemanha, vindo com 23 anos de idade para o Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro no início de 1882. Em Santos dedicou-se ao comércio do café e um ano depois, retornou ao Rio de Janeiro, empregando-se em uma empresa importadora de máquinas de costura, brinquedos, armas, etc. Trabalhara para a firma Nothmann, mas quando o proprietário faleceu adquiriu essa empresa juntamente com outro sócio, alterando o seu nome para Arp & Cia. Posteriormente, essa firma se transformaria em uma holding. Em 1901, Julius Arp torna-se sócio de uma fábrica de meias em Joinvile, encampando-a ulteriormente. Empresário do tipo self made man, interessou-se na aquisição da concessão do serviço de fornecimento de energia elétrica em Nova Friburgo, contrato até então estagnado entre a Câmara Municipal e o coronel Antônio Fernandes da Costa. Julius Arp obteve a concessão do fornecimento dessa energia e ainda hoje avistamos na estrada que liga o centro da cidade a Mury, uma pequena casa de alvenaria escrita “Usina Hans, 1911”. Ainda que sejamos indiferentes à História, esses monumentos estão aí para nos lembrar por que somos assim.
 
Fábrica Rendas Arp
 
Fábrica Filó
 
                                                          Fábrica Ypu
A Companhia de Eletricidade de Nova Friburgo era o sinal verde para implementação de um parque industrial em Nova Friburgo. Adquirindo terras dos herdeiros dos barões de Nova Friburgo, Julius Arp fundou em junho de 1911, com a razão social M.Sinjen & Cia., a Fábrica de Rendas Arp. Em sociedade com Maximilian Wilhelm Bogislav Falck, Julius Arp montou uma fábrica de artigos de passamanaria, surgindo a Fábrica Ypu S.A. Em 1919, se desligaria da Fábrica Ypu. A estação de trem desde então foi tomada pelo transporte contínuo de máquinas para as indústrias e o bulício de idas e vindas de técnicos alemães a Nova Friburgo despertava a curiosidade local. Foi Julius Arp quem convenceu Carl Ernst Otto Siems, que desejava instalar uma fábrica no Brasil, a investir em Nova Friburgo. Em 1925, surgia a Fábrica de Filó S.A. de propriedade de Otto Siems no qual Arp era acionista. Estava formada a Trindade Teutônica. Em 1937, incentivados por Julius Arp, Hans Gaiser e Frederico Sichel inauguravam o ciclo metalúrgico, somando-se às empresas alemãs no município. Criava-se a Fábrica de Ferragens Hans Gaiser(Haga). Deixo ao articulista do jornal A Paz a conclusão dessa matéria: “...a nossa cidade experimentará, pela primeira vez, a sensação do estremecimento do seu solo para força propulsora da indústria moderna(...) é o início de uma nova Era para a nossa cidade...”(29/01/1911). Diante desses fatos, a Era industrial não merecia ficar no limbo da história de Nova Friburgo.

terça-feira, 30 de abril de 2013

OS TIPOS DE RUA: NOS BAS-FONDS DA VIDA 

Olavo Bilac escreveu em Ironia e Piedade: “Não ríamos da celebridade dos tipos de rua! É uma celebridade de motejo e assuada, mas essencialmente, vale tanto quanto os outros, de entusiasmo e aplauso”. Toda cidade tem os seus “tipos de rua”, que ficam na memória da população local e são geralmente mencionados quando se evocam lembranças do passado. Atualmente já não provocam o motejo de transeuntes, como outrora. E o que tinham em comum esses tipos de rua nos bas-fonds da vida? No início do século XX, eram em sua maioria negros e mulatos, descendentes de escravos, indivíduos marginalizados do processo formal de trabalho. Eram tipos que provocavam a ironia de uns e a piedade de outros. Em Amparo havia a “Nega da Trouxa” e atualmente em Mury circula pela antiga estrada de ferro a Dona Maria.
Acácio Ferreira Dias, no segundo volume de “Terra de Cantagalo” fez uma interessante recolha desses tipos de rua da cidade de Cantagalo, do início do século XX. Segundo ele, eram parias desgraçados, nepropatas, paranóicos, seres mórbidos, farrapos humanos que no caos se debatem estonteados, sem razão e sem vontade. Autômatos conduzidos pela mão fatal da desgraça, praticam desatinos, caminham a esmo no desarranjo das faculdades mentais, divagando em um mundo à parte num mutismo aparvalhado em sua vesania. Antonio Maluco, português, 38 anos, alto, espadaúdo, barba crescida, cabelos hirsutos e sempre despenteados, pendia sempre na boca uma bagana de palha de milho e fumo picu. Rachador de paus roliços, fazia esse serviço em troca de um almoço, um café com pão e cobrava muito pouco por seu serviço. Na primeira década do século XX, em Cantagalo, as casas ainda eram servidas pelo fogão a lenha. Consequentemente, havia a profissão de condutor e rachador de lenha. Antonio Maluco, na faina do trabalho não cessava em gritar em um monólogo incessante: “Oh! Que grandes cães!” ou então, “Essas mulatinhas de hoje querem passar por brancas.” Mas a quem ele dirigia esses impropérios? Pés descalços e negros de sujeira, caminhava sempre a passos largos, carregando aos ombros, como um fuzil, o machado amolado, sua ferramenta de trabalho, o seu ganha pão. A população o explorava por sua labuta de trazer a lenha e rachá-la, e o que ganhava pelo seu trabalho nem pobre queria receber como esmola. A miséria que lhe pagavam consumia em “martelos” de cachaça e daí a garotada impiedosa apupava-o, chamando-o de Antonio Maluco. Voltava-se irritado contra a garotada, xingando-lhes as mães e dando bananas, enquanto seguia para não se sabe onde. Muitas vezes, quando se excedia, curava a carraspana passando a noite na delegacia. No ano de 1907, o corpo de Antonio Maluco foi encontrado em adiantado estado de decomposição no porão da residência do padre Veiga, que o reverendo lhe cedia em troca da lenha.
Dona Veridiana. Bom Jardim - RJ
Maria Vira-beco, negra pernambucana, de vida desregrada quando moça era prostituta do alcouce do Beco do Carvalho. O beco, escuro e insalubre, iluminado por combustores de querosene, era um lugar perigoso que reunia a flor da malandragem, os praças do destacamento policial e o baixo meretrício. Não havia uma só noite em que os moradores próximos ao local não fossem acordados pelo sururu dos frequentadores do local. Maria vira-beco fora na flor da juventude conhecida pelo vulgo como Mariquinhas arroz-doce, uma linda cabrocha. Apaixonando-se por um “bamba” da zona e vendo-se desprezada, ateou fogo às vestes transformando-se desde então em um farrapo humano. Andava pelas ruas com um enorme chapéu de palha todo esburacado, com um cigarro ou cachimbo de barro no canto da boca, carregando os seus molambos em uma pequena cesta de taquara. Dizia ter sido escrava de “Nho, Nhô”, barão de Cantagalo. Ao lado das amigas de infortúnio como Flausina, Maria Barulho e Pão de Pataca, nas rodas de batuque em comemoração aos 13 de maio(1888), data abolição da escravidão no Brasil, dava vivas a princesa “Isabé”. Envelhecida e senil, era habituée na ronda aos defuntos. Velava-os a noite inteira e resmungando uma cantoria exótica, traçava no ar sinais cabalísticos ao redor da câmara mortuária, beijando de vez em quando as mãos e os pés do cadáver.

A "Nega da Troxa", Amparo, Nova Friburgo(RJ)

Moradora de rua, anônima, Nova Friburgo(RJ)

Já Tia Ana veio moça para o Brasil como escrava e trabalhou para o sinhô barão(não diz qual) até a lei áurea que libertou os escravos. “Bença, tia Ana!” diziam os transeuntes. A velha negra, vergada sob o peso dos anos e da escravidão recentemente extinta, retrucava: “Zus Cristo abençoe nhô-nhô! Uma esmolinha para a véia, meu sinozinho.” Ninguém negava esmola a velha escrava, arrimada ao seu tosco bordão. Tia Ana, dizia na roda de curiosos, que foi capturada no litoral da Guiné, jogada num porão de navio negreiro e embarcada para o Rio de Janeiro. Dizia que na juventude fora moça bonita e o pai a vendera em troca de rolo de fumo a um “sinhô” português, homem mau que a prendera com correntes. Falava sobre o tronco, onde os senhores prendiam os escravos, chicoteavam-lhes as costas, mandando a seguir lavar as chagas abertas, com água e sal.
Fica assim o registro dos tipos de rua que marcam a memória local. Segundo Magali Gouveia Engel os tipos de rua eram personagens cujas trajetórias de vida se desenrolavam nas fronteiras entre a loucura, a embriaguez, a mendicância e a vadiagem e conseguiram preservar as vivências e convivências proporcionadas pela liberdade das ruas.

Asilo de Cantagalo, foto das primeiras décadas do século XX município do Rio de Janeiro.






segunda-feira, 29 de abril de 2013

BATALHA DAS FLORES, ENTRUDO E O ZÉ PEREIRA:

“VOCÊ ME CONHECE?” 

Batalha das Flores em Nova Friburgo

 

“Salve, Carnaval!/Esperar pelo folguedo/Um ano, não é brinquedo../(...)Enfim, chegou o tal, suspirado carnaval./Cloriforme virgulado, virá ele, com micróbios?/ Digam os sábios ambrosios/ se o sobredito traz mal?/ Se o cujo está constipado/ e preso sobre o costado/conduz a constipação./Dê-se uma polvilhada/água de seringada/ completa desinfecção.” Esta foi uma das músicas cantada nas ruas de Friburgo, no carnaval de 1895. Percebe-se uma ironia à política higienista empreendida pela Câmara Municipal, que era administrada em sua maioria por médicos. Mas o carnaval era assim, um momento para citar os denominados “ditos espirituosos” e os friburguenses percorriam a cidade para ouvir a “idéia e a pilhéria” que normalmente criticavam o governo em relação aos bonds que não chegavam, o projeto de luz elétrica que não saía do papel, o imposto da décima urbana, nosso IPTU de hoje, a iluminação precária dos lampiões ou a campeã das reclamações, a Companhia de Trem Leopoldina. Logo, os foliões friburguenses adoravam ouvir os grupos carnavalescos, como os caninhas verdes, que percorriam as ruas da cidade cantando os “ditos espirituosos”. Era uma verdadeira catarse do povo contra os governantes da cidade. Ainda pelas ruas, retumbantes Zé Pereiras num zabumbar contínuo atroavam os ares com os ruídos de suas latas de querosene, destruindo os ouvidos da pobre humanidade. A escravidão mostrava sua permanência no carnaval de rua, pois um gaiato vestido de negra “Mina” tirava a sorte dos transeuntes, provocando gargalhadas da população. Grupos de rapazes e moças da sociedade percorriam as casas e o comércio, troteando e “pintando o padre”.

Batalha das Flores em Nova Friburgo

O entrudo moleque ainda era praticado e a população munida de bisnagas, confetes e limões, divertia-se “pintando o sete”, não obstante o entrudo ter sido proibido em Friburgo, a partir do carnaval de 1895. O entrudo é um antigo folguedo carnavalesco em que os brincalhões molhavam-se reciprocamente lançando água de baldes, limões-de-cheiro, que consistiam em bolas de cera, alguns contendo até urina, ou atiravam farinha uns aos outros. Depois fez-se uso de bisnagas, que substituíram os limões de cera. Essa prática foi popular em Portugal, mas, sobretudo no Brasil, até 1845, quando a brincadeira ficou sujeita a  proibições mais rigorosas. No carnaval de rua, havia ainda a Batalha das Flores, realizada na Praça do Suspiro, sendo promovida pela elite da cidade ou no dizer dos jornais da época, o que havia de “seleto e distinto em nossa sociedade”. A Batalha das Flores tinha este nome porque os “carros” puxados a cavalo eram ornamentados por inteiro com flores artificiais e naturais como orquídeas, rosas, papoulas, camélias ou cravos, estas duas últimas muito comuns na cidade.

                                           Batalha das Flores em Nova Friburgo

Estes ornamentos de flores tinham formas de animais, como um cisne, borboletas, motivos de mar ou estilo japonês. O “carro” da família Rui Barbosa era um char á bancs, bouton d´or em feuillage, trés distingue, dizia o jornal. Já “carro” dos descendentes do Barão de Nova Friburgo era uma delicada corbeille blanche de camélias. Era “uma verdadeira tetéia”. Depois do desfile pelas ruas, damas e cavalheiros digladiavam-se em animada e ardente batalha atirando uns aos outros as flores dos “carros”, ao som das “furiosas” bandas de música. E ainda havia os anônimos mascarados que enchiam a paciência dos foliões com aquela incessante e enjoada pergunta: “Você me conhece?”

sexta-feira, 26 de abril de 2013


O BAR DO SEU MÁRIO


          Quem nunca tomou uma bronca do seu Mário Babo? Um namoro indecente no bar, um pé na cadeira, leituras impróprias, o sujeito logo tomava uma bronca e retirava-se aborrecido. Porém, tempos depois, voltava ao bar. Ninguém resistia deixar de freqüentar o Bar do Seu Mário. Era oficialmente o Bar Central, mas que o vulgo tornou-o Bar do Seu Mário, já que o proprietário, podemos afirmar, estava acima do estabelecimento. Localizava-se na esquina da Rua São João, hoje no local uma loja de bijuterias.

          Seu Mário, imigrante português, veio para Friburgo em 1951, de porte da denominada “Carta de Chamada”, condição exigida pelo governo para o imigrante trabalhar no Brasil. Trabalhou inicialmente no Bar América, o mesmo bar que hoje funciona na Rua Monte Líbano, de propriedade de seu irmão. O Seu Mário, em suas memórias, lembra que naquela época os imigrantes mais importantes em Friburgo eram os alemães, que na saída de suas ocupações nas fábricas, iam ao Bar América para tomar cerveja. Recordemos, os capitalistas alemães eram proprietários das maiores indústrias como a Rendas Arp, Filó, Ypú e Haga, que empregavam boa parte da população.


          Seu Mário, no entanto, voltou para Portugal, morou em Angola, mas retornou para Friburgo, onde abriu o Bar Central. Bebia-se cerveja e comia-se pastel. Mas foi ele quem trouxe o chopp para a cidade e consequentemente o delicioso bolinho de bacalhau, pelas mãos de sua eterna companheira, a também portuguesa, Dona Alcina. Mas quem não se lembra dos sorvetes de abacaxi, pistache, ameixa, creme holandês, de fabricação caseira, que concorria com a Sorveteria Única, da família Ruiz.

          O bar foi inicialmente freqüentado por operários. Saíam das fábricas, iam para suas casas, tomavam banho, colocavam um terno e sem seguida dirigiam-se para o Bar do Seu Mário num ritual do tipo trabalho, lar e botequim. À tarde, as senhoras da sociedade, como os Braune, freqüentavam o bar para um cafezinho e uma boa conversa, um espaço de sociabilidade. À noite era a vez dos maridos. Médicos, advogados, magistrados, enfim, profissionais liberais que iam tomar o seu chopp e comer bolinhos de bacalhau. Nesta fase, os operários das fábricas já não iam mais ao bar e podemos dizer que foi a elite da cidade que passou a freqüentá-lo. Sr. Laércio Ventura, diretor de A Voz da Serra, acompanhado de seu amigo DeCache freqüentavam o bar. Passaram por lá políticos como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Brizola e diversos artistas como Dina Sfatti, Cláudio Marzo, Reginaldo Farias, o comentarista de futebol Gerson, todos veranistas da aprazível Nova Friburgo.

          Mas o que marcou o Sr. Mário em suas memórias foram os alunos da Fundação, um colégio do tipo internato, considerado um dos melhores do país. A maior parte destes alunos vinha de diversos estados e eram considerados pela sociedade friburguense como bad boys. Também pudera. Nas olimpíadas internas dos colégios, que ocorriam no Celso Peçanha, arrumavam briga com os alunos do Colégio Anchieta, cuja rixa estendia-se por toda a cidade, onde pedras, correntes e garrafas rolavam entre os desafetos apavorando os comerciantes próximos ao estádio.  Era no bar do Seu Mário onde os alunos da Fundação se refugiavam, fugindo da polícia. Seu Mário lhes dava guarita não porque desafiasse as instituições, mas os tratava como seus filhos, dando-lhes abrigo. Afinal, os meninos da Fundação, que guardavam suas malas em seu bar e bebiam milk shake e toddy, não eram bandidos para serem presos pela polícia. Eram apenas escaramuças de rapazes.

          Em suas memórias, o Seu Mário tem muito a nos contar. Afinal, foram vinte e seis anos no ponto central da cidade, passando por ele todas as classes sociais, vivendo os ciclos de progresso da cidade em um tempo em que o comércio tinha a personalidade de seu proprietário. E no bar do Seu Mário ninguém tirava casquinha não. Tomava uma tremenda bronca, pois era um bar de família. Quem em Friburgo também não tem em suas memórias uma história para contar do Bar do Seu Mário? Entrevista realizada em outubro de 2009 com o Sr. Mário Babo e faz parte do acervo de Memórias da historiadora Janaína Botelho.

quinta-feira, 25 de abril de 2013



A PRISÃO E FUGA DOS MERCENÁRIOS

A Imigração Alemã – Parte I 

 

Era o dia 12 de fevereiro de 1825, quando um grupo de cinco soldados mercenários alemães, acorrentados uns aos outros, passou pela pacata vila de Nova Friburgo, despertando a atenção dos moradores. Acusados de deserção e presos em Cantagalo, eram transportados por praças sob o comando de um sargento, que os conduzia ao Rio de Janeiro. Na vila, fizeram uma pequena parada no quartel e curiosamente a partir de então passaram a ser seguidos por um colono alemão chamado Heinrich Bourgignon. De repente, ocorre algo estranho quando o grupo passa pela “vilagem dos alemães”. O sargento que comandava o grupo retira as correntes dos mercenários, que debandaram logo em seguida. Bourgignon então tem a sua prisão decretada por um praça e um verdadeiro imbróglio se arma na pacata vila de Nova Friburgo. O que teria ocorrido naquela ocasião? Para esclarecer os fatos foi realizado um Termo de Inquirição conduzido pelo capitão-mor de Cantagalo, Manuel Vieira de Souza, com a oitiva de duas testemunhas. O primeiro depoimento foi de José Francisco de Azevedo, homem pardo, 29 anos, carcereiro da cadeia de Cantagalo e condutor de um outro grupo de presos. Sendo-lhe perguntado sobre a fuga dos cinco desertores, assim declarou:
“...disse ter presenciado, de longe a foragida, por estar de guarda aos outros presos que iam em diferentes correntes e que, do lugar onde estava, vira o sargento encarregado dos presos entrar com os desertores em uma casa e logo que saiu com eles, lhes meteu a chave no cadeado da corrente. E os presos, vendo que estava o cadeado aberto, fugiram. E antes de ele sargento ter aberto o cadeado, tanto ele, testemunha, como os outros condutores, gritaram em altas e inteligíveis vozes que, em nome de Sua Majestade Imperial, requeriam que não abrisse ele, sargento, o cadeado(...) a causa de o terem prendido[refere-se a Bourgignon] foi por ele, colono, acompanhar os presos do quartel até aquela Vilage e que assistira sempre[ilegível] os presos até a soltura que fez o dito sargento(...) ele testemunha, desconfiando que ele tinha ajudado a dar soltura aos presos, foi prendê-lo à ordem de Sua Majestade Imperial.” No segundo depoimento, Eusébio Baptista Coelho, homem preto, 30 anos, pedreiro, natural de Cantagalo e condutor  dos mercenários ao Rio de Janeiro, declarou ao capitão-mor: “...ele, testemunha, veio sempre desde Cantagalo até o momento da fugida dos presos feito guarda dos desertores e que, por várias vezes, o sargento-comandante, encarregado daquela leva, os tinha soltado para mudar os braços e nunca os presos fizeram a mais pequena resistência para fugirem e logo que eles chegaram ao quartel desta vila, introduziu-se um dos colonos [Bourgignon] a falar sempre com os presos e este seguiu os presos, do quartel até a Vilage de Cima e logo que ali chegaram um dos presos desertores, não quis dali passar dizendo que não podia ir descalço, e tendo o sargento deixado entrar em uma casa para calçar uns sapatos, onde estiveram pouco tempo e depois de terem saído para fora da porta, principiaram a rogar ao sargento que lhes mudasse as correntes para o outro braço...”
O depoimento das duas testemunhas deixa uma margem de dúvidas se teria havido conluio ou não entre o sargento e o colono alemão Bourgignon. Heinrich Bourgignon, 23 anos, era natural de Hessen e chegou ao Brasil em 1824, no navio Argus, como mercenário. Porém, não serviu nas Forças Armadas. Era comum se corromper as autoridades brasileiras, conseguindo a isenção do serviço militar e ficando enquadrado na classe de colono. Foi o que provavelmente ocorreu com Bourgignon. Localizamos o nome dele no site “Acervo Design - os Alemães Pioneiros de Nova Friburgo”, constando nesse documento uma espécie de ficha policial de Heinrich Bourgignon, que o descrevia como “hábil rapaz, mas precisa ser vigiado”. Coincidentemente, Bourgignon viajava muito a Cantagalo, logo, deve ter acoitado seus colegas mercenários naquelas paragens. Teria havido negociação para facilitar a fuga dos soldados entre o sargento e Bourgignon? Era natural a camaradagem entre os soldados mercenários e Bourgignon era um deles. Afinal, a punição, à época, para os desertores, compreendia na aplicação da pena em torno de 200 chibatadas, mais as despesas que arcavam de sua própria captura. Considerando que Bourgignon provavelmente se utilizou de suborno para não servir nas Forças Armadas, pode ter subornado igualmente o sargento, responsável pela escolta. Por outro lado, Bourgignon era descrito como um homem “hábil” e pode ter ludibriado o sargento, que ingenuamente mais uma vez abriu as correntes para mudá-las de posição no braço dos prisioneiros, como vinha fazendo desde Cantagalo. Esse Termo de Inquirição encontra-se na caixa 08 do Centro de Documentação D. João VI, mas não foi localizada a conclusão desse inquérito. No entanto, não nos interessa se o sargento e Bourgignon estavam mancomunados ou não. A pergunta mais intrigante nesse episódio é a seguinte: Quem eram esses mercenários alemães que fugiram para Cantagalo? De onde desertaram e por quê? Por que o Brasil teria mercenários alemães nas Forças Armadas, no Primeiro Reinado? É sobre essas questões que narraremos, em dez matérias, um dos mais interessantes episódios de nossa história envolvendo soldados e colonos germanos, que culminou com a vinda, em 1824, de imigrantes alemães a Nova Friburgo.


           O IMPOSTO DE SANGUE:  

   A Imigração Alemã – Parte II 

 

A independência do Brasil, em 1822, criou um foco de tensão entre o Brasil e Portugal. O Brasil sofreu algumas investidas militares por parte de Portugal e só não sucumbiu porque as finanças de Portugal e a crise política interna não permitiam uma guerra contra a independente nação. O temor da recolonização dominava o espírito público da época. Portugal somente viria a reconhecer a independência do Brasil em 1825. A Guerra da Independência nem havia começado e os alarmantes boatos de que Portugal estava mobilizando uma colossal expedição punitiva, para neutralizar as veleidades separatistas dos brasileiros, não deixavam o Imperador D. Pedro I dormir sossegado. D. Pedro I procurou se preparar para a iminência de uma guerra entre o Brasil e Portugal. As províncias do nordeste apoiavam a Metrópole e o movimento separatista ameaçava desmembrar essas províncias do país. O movimento republicano em Pernambuco recrudescia. Não bastasse isso, havia a iminência de um conflito armado contra as Províncias Unidas do Rio da Prata(Argentina) pela conquista do Uruguai. A solução para a Questão Cisplatina projetava-se como eminentemente militar e a guerra acabou ocorrendo no período de 1825 a 1828. Com todas essas tensões envolvendo questões externas e internas, D. Pedro I voltou sua atenção para as Forças Armadas legadas de seu pai, D. João VI. Foi uma decepção. As tropas brasileiras não passavam de milícias mal armadas e indisciplinadas e os oficiais, todos portugueses, não gozavam da confiança de D. Pedro I.
A história do recrutamento no Brasil e a obrigação de servir nas Forças Armadas, o imposto de sangue, não fosse trágica, seria cômica. A maior parte era de recrutas da Armada  forçados na base do “pau e da corda”. Vagabundos e delinqüentes sempre foram alvo predileto das autoridades encarregadas do recrutamento militar. Quando o governo necessitava recrutar, esperava pelas festas religiosas e pegava na rede uma enorme quantidade de rapazes que inocentemente se divertiam nos folguedos. Muitas vezes, promoviam maviosas retretas nas praças para atrair o povo e tão logo a rapaziada chegava para saber o motivo da festa, uma patrulha, até então escondida, caía-lhes em cima, e na base do pau e da corda, despachavam os rapazes para os quartéis do Rio de Janeiro. Em Nova Friburgo, por ocasião da Revolução de 30, foi dissimulada uma partida de futebol, no Campo do Friburgo, onde se objetivava, tão somente, arregimentar recrutas. Nessa ocasião, ao invés da lembrança de um divertido jogo de futebol, o que alguns rapazes levaram para casa foi um uniforme para lutar junto as forças legalistas lideradas em Friburgo por Galdino do Vale Filho. Retornando ao século XIX, há registros de que os recrutas eram conduzidos acorrentados, manietados em grupo, como se fazia com os escravos, até o Rio de Janeiro, e isso sem receber qualquer alimentação. Os mais rebeldes eram conduzidos com gargalheiras, uma coleira de ferro com uma pua, a mesma utilizada em escravos fujões. Uma escolta os seguia armada até os dentes, e vez por outra baixavam o cacete nos mais desaforados. Chegando ao Rio de Janeiro, os escravos saudavam com ensurdecedoras zombarias os desgraçados recrutas. Muitos eram provedores de família, o que gerou reclamação junto ao governo. Para tanto, passaram a ficar isentos, ao menos teoricamente, agricultores, carpinteiros, tropeiros, etc. Escravos libertos eram o alvo predileto dos recrutadores para formar o Batalhão de Pretos Libertos. Com o Exército e a Marinha competindo nessa surrealista busca de homens para seus quadros, não era de admirar que em determinados momentos não houvesse mais vagabundos, delinqüentes ou negros forros nas vilas e cidades brasileiras. As Forças Armadas eram temidas devido aos castigos corporais, extremamente cruéis, onde o chicote corria solto a qualquer desvio de conduta de um soldado. A punição aplicada era de centenas de chicotadas diante da tropa formada.
O ethos militar tem na hierarquia e na disciplina os seus pilares, mas no Exército brasileiro de antanho a disciplina era algo ainda incipiente. Não havia qualquer tipo de instrução, exercícios militares ou manobras. A tropa passava anos sem disparar um só tiro. A cachaça era consumida o dia inteiro nos quartéis. Um mercenário alemão descreveu um batalhão composto por soldados brasileiros como verdadeiros mondrongos:
“O aspecto de um destes batalhões brasileiros de linha, com seus grotescos fardamentos de gala(...)com as suas bandas de música mascaradas de hussares e ulanos, ricamente agaloadas, era na realidade, tão peculiarmente cômico, que nos relembra os teatros de títeres e as estampas coloridas do tempo de nossa infância. Aqui perfila-se um negro, com a sua chata e inexpressiva fisionomia africana, entre um feio mulato amarelo e um índio acobreado(...) De quando em quando observa-se na fileira um brasileiro pálido e franzino. A todos, porém, falece igualmente o garbo marcial, a atitude e o desenvolvimento físico que caracterizam o soldado europeu. Homens altos e baixos, velhos e moços, indivíduos esbeltos e outros curvados pelo antigo labor de escravo, formam ali uns ao lado dos outros, na mesma fila. E entretanto, estes chamados soldados são admiráveis em suportar privações, quer em marcha, quer acampados. Possuem uma rijeza de corpo, uma taciturna e indolente docilidade, e uma sobriedade em comer e em beber, que os habilitam a transpor, como carregadores, as vastas paragens desertas da América Meridional, sem que jamais lhes ocorra indagar para onde são conduzidos, ou porque motivo real têm de marchar.”
Diante dessa conjuntura, o Imperador D. Pedro I voltou sua atenção para a contratação de mercenários para a garantia de seu vacilante trono.


A BUSCA POR MERCENÁRIOS: 

A Imigração Alemã – Parte III 

 

A imigração dos alemães ao Brasil está diretamente relacionada com a organização militar do país, ocorrida no Primeiro Reinado. O fim da era napoleônica trouxe paz à Europa e a desmobilização dos exércitos devolvera à vida civil milhares de soldados. Era uma geração nascida e criada na guerra e para o qual não havia emprego e nem alimento suficiente devido ao excesso de população dos países e Estados europeus. Como o Exército brasileiro era deficiente, optou-se pela contratação de mercenários, ou seja, soldados experientes em combate. Porém, havia um problema: a legislação dos países proibia a emigração de ex-combatentes por uma questão de segurança nacional. A solução encontrada pelas autoridades brasileiras para driblar essa proibição foi a de misturar alguns poucos colonos ao recrutar mercenários, já que os primeiros eram autorizados a emigrar. Para cada grupo de mercenários contratados teriam que vir também algumas famílias de colonos.

O Brasil já recrutara em 1820 degredados italianos(Napolitanos) para as Forças Armadas, mas foi uma experiência que não deu certo e o governo tomou a decisão de conservá-los nas prisões do Rio de Janeiro. Para a nascente Marinha Imperial brasileira foram cooptados marinheiros ingleses. Estima-se que 30 oficiais e 500 marinheiros ingleses foram aliciados nos portos brasileiros, o que irritou de sobremaneira o governo inglês. O herói inglês Lorde Cochrane entrou para a Marinha brasileira, como Almirante, e fez a diferença na Guerra da Independência. As autoridades brasileiras tentaram inicialmente contratar mercenários franceses e suíços, esses últimos considerados os melhores soldados por sua disciplina e moralidade, mas por falta de recursos financeiros não pode fazê-lo. Cerca de duzentos colonos suíços de Nova Friburgo abandonaram a agricultura em troca de um soldo fixo no Exército Imperial, além da promessa de rápidas promoções e a possibilidade de se instalarem onde bem entendessem após 3 anos de serviço militar. A esses suíços juntou-se um pequeno número de estrangeiros de várias nacionalidades que vagavam pelo Rio de Janeiro para servir nas Forças Armadas. Como o sogro de D. Pedro I era Imperador da Áustria, tentou via diplomática obter mercenários austríacos, mas as autoridades desse país impediram essa empreitada. Ainda se tentou cossacos russos, mas não lograram êxito. Finalmente, optou-se por mercenários alemães.

Logo, a iniciativa de contratação de mercenários, no Primeiro Reinado, voltou-se então exclusivamente para os Estados Alemães. Assim como os suíços tiveram Gachet para intermediar a sua vinda ao Brasil, os alemães possuíram como agente, com nome aportuguesado, Jorge Antonio Aloísio Von Schäffer. Em comparação a Gachet, pode-se afirmar que Schäffer tinha muito mais poderes e influência junto às autoridades brasileiras, gozando inclusive de extrema confiança da Imperatriz Leopoldina. Schäffer tornou-se o pai da imigração alemã no Brasil e foi escolhido por José Bonifácio para a missão de cooptar mercenários nos Estados Alemães. Schäffer era médico e descrito como um alemão feio, desajeitado, vaidoso e que bebia muito. Porém era hábil, culto e insinuante. O problema de Schäffer era as suas notórias bebedeiras e bacanais que promovia que não condizia com o comportamento de um representante oficial de um país. Não foi por acaso que angariou a rejeição da comunidade internacional e perdeu a representação política e diplomática do Brasil ulteriormente. Schäffer parte para a Europa para cumprir a sua missão de obter o reconhecimento da independência do Brasil e arregimentar soldados. Os alemães aliciados por ele compreendiam mercenários e colonos, sendo que esses últimos foram cooptados apenas para disfarçar a contratação de soldados e fugir da fiscalização dos Estados Alemães, que proibia a contratação de ex-combatentes. Os soldados viajariam às custas do governo brasileiro, serviriam durante seis anos como militares pagos e depois receberiam terras para cultivar.

No entanto, Schäffer diferentemente do que lhe fora determinado, arrolou nas duas primeiras expedições, o Argus e o Caroline, muito mais colonos do que mercenários, e isso com uma presteza que surpreendeu as autoridades brasileiras, que não estavam preparadas ainda para recebê-los. E foi por isso, que Nova Friburgo entrou nessa história, como veremos adiante. Foi preparado às pressas, para alojar os colonos alemães, um antigo conjunto de prédios velhos destinados a industrialização de óleo de baleia na Armação de São Domingos da Vila Real da Praia Grande(Niterói). Para recebê-los e encaminhá-los, criou-se a Inspetoria de Colonização Estrangeira nomeando para sua direção Monsenhor Miranda, que já tinha experiência na imigração dos colonos suíços em Nova Friburgo. Por que Schäffer conseguiu enviar tão rápido os imigrantes alemães para o Brasil logo que chegou à Europa?

SOLDADOS OU COLONOS?
A Imigração Alemã – Parte IV 

 

No início do século XIX, Nova Friburgo foi objeto de duas imigrações: de suíços e alemães. No entanto, essas imigrações possuíam contextos políticos absolutamente díspares. No caso dos colonos suíços, houve um projeto político de assentamento de imigrantes para substituir a mão de obra escrava gradativamente, pois a pressão inglesa pelo fim da escravidão era intensa. Já em relação aos colonos alemães não havia uma política de colonização stricto sensu no governo de D. Pedro I. A maior preocupação da época era a obtenção do reconhecimento da independência junto à comunidade internacional; a possibilidade de uma retaliação militar por parte de Portugal; a guerra contra a Argentina na disputa pelo Uruguai e as revoluções intestinas. Os colonos alemães foram tão somente o esteio para que mercenários pudessem emigrar para o Brasil, pois seus países de origem proibiam a contratação de soldados. Desejava-se a expertise dos soldados alemães, adquirida nas guerras napoleônicas, para a recente Força Armada Brasileira.
A inexistência de uma política de colonização pode parecer estranha para quem tem à frente do governo José Bonifácio, o maior arauto da imigração de estrangeiros para a substituição do braço escravo pelo livre. Foi inclusive o incentivador da reforma agrária no Brasil para minar os latifúndios. Mas devido à circunstância acima colocada, o país necessitava de soldados e não de colonos. No entanto, José Bonifácio tentou conjugar as duas coisas e cogitara, de início, em estabelecer uma colônia rural-militar no país, introduzindo cossacos russos com a mesma organização dos Cossacos do Don e do Ural. Essa excentricidade devia-se ao fato dos cossacos russos serem meio soldados e meio agricultores e com isso disfarçavam a contratação de soldados e arrestavam a reação portuguesa. Por dificuldades que se desconhece, Bonifácio acabou substituindo os cossacos pelos alemães. José Bonifácio, ainda que objetivando a contratação de soldados, a que denominou de indivíduos de 1° classe, não deixou de pensar na colonização, pois estipulou nas Instruções que ao fim de seis anos de serviço militar, poderiam os soldados dar baixa e receber terras para cultivar, passando para a 2° classe, ou seja, à condição de colonos. Porém, a prova de que não desejava colonos naquele momento veio de um fato interessante. Uma comuna inteira, composta de 300 famílias, a Comuna de Haagen, do Reino de Wurtemberg, cujos membros possuíam diversos ramos de “indústrias”, quiseram emigrar para o Brasil, mas o governo brasileiro não quis custear as passagens. O governo não abria mão do pagamento das  passagens por parte dos colonos, e somente custeava a dos que desejassem assentar praça no Exército Imperial, o que não era o caso dessa comuna. Logo, está bem claro que o governo brasileiro não tinha naquele momento uma política de colonização nos moldes do que ocorreu quando da imigração dos suíços ao Brasil.
Nova Friburgo nunca esteve nos planos de Schäffer. Os imigrantes alemães destinavam-se às colônias de Frankenthal e Leopoldina, na Bahia, ao lado das sesmarias abiscoitadas por Schäffer e seu sócio Henning. Mas por que então os colonos dos navios Argus e do Caroline foram parar na vila de Nova Friburgo? Acreditamos que tenha sido porque Schäffer, por uma questão de sorte, conseguiu embarcar muito antes do esperado pelo governo brasileiro, os primeiros navios, o Argus e depois o Caroline. Disse sorte porque conheceu, em Frankfurt, o Prof. Kretzschmar que agenciava a emigração de colonos para outros países e já tinha um grupo de 600 imigrantes prontos para embarcar. Isso corrobora com o fato de nesses dois primeiros navios terem vindo muito mais colonos do que desejavam as autoridades brasileiras, pois Kretzschmar se dedicava a emigração especificamente de colonos e não de soldados. Logo, foi em razão da agilidade em que chegaram os primeiros navios com alemães ao Rio de Janeiro, que Nova Friburgo entrou nessa história. Ao que parece, as colônias de Frankenthal e Leopoldina, estabelecidas desde 1816, ainda não estavam prontas para recebê-los e tiveram que improvisar em outro lugar. A improvisação foi tanta que Conrado Meyer, que os conduzia, sabiamente pegou um navio inglês no meio do trajeto para chegar antes do Argus e preparar a instalação dos colonos. Os soldados já tinham destino certo, os quartéis. Mas onde assentar as famílias de colonos?
Naturalmente se lembraram da primeira colônia de suíços instalada no Brasil: Nova Friburgo. Era próxima ao Rio de Janeiro, tinha na ocasião muitas terras abandonadas pelos suíços, casas para recebê-los e o Núcleo dos Colonos de Nova Friburgo precisava ser revitalizado, pois foi considerado um grande fracasso à época. Foram aplicadas aos colonos alemães as mesmas vantagens dos colonos suíços estipuladas nas condições do decreto de 16 de maio de 1818, como a distribuição de datas de terras e o pagamento de subsídios. No entanto, a Câmara Municipal de Nova Friburgo não isentou os alemães do pagamento de imposto sobre os “ofícios”, como tinham direito os suíços. Os problemas enfrentados pelos colonos alemães foram às mesmas dos suíços: distribuição de terras improdutivas, subsídios recebidos à custa de muitas rogativas, dificuldade de chegar aos mercados por conta das péssimas estradas e caminhos. Mas por que se preocupar com os colonos, se o que o governo brasileiro desejava era que os braços fortes dos alemães portassem não enxadas, mas espingardas de pederneiras?
 
A DEPURAÇÃO DA EUROPA:

          A Imigração Alemã – Parte V 

 

D. Pedro I poderia ter dado continuidade à política de colonização em substituição da mão de obra escrava pela livre, iniciada por D. João VI. Mas a política de assentamento de colonos não estava em seus planos. Prevaleceu a improvisação, como foi o caso de Nova Friburgo, dando aos colonos alemães terras inférteis abandonadas pelos suíços, situação somente superada pelo esforço pessoal de cada uma das famílias de imigrantes. O Imperador tinha preocupações maiores e realmente muito mais importantes à época: a consolidação da independência do Brasil, preparando-se para um possível conflito contra Portugal, a guerra contra a Argentina na Questão Cisplatina e o movimento separatista das províncias do nordeste. O Imperador-soldado voltou sua atenção tão somente para os mercenários, não importando a sua origem. Essa atitude gerou um trauma na população brasileira refletida até o final do século 19. Assim escreveu um jornal de Nova Friburgo: “...O Brasil vai a vapor na via do progresso agrícola, começando pelo estado do Rio de Janeiro que nunca acaba de fazer experiências no ramo imigração(...)vai mandar proceder a mais rigorosa limpeza nas ruas dos países estrangeiros e transportar o lixo para este estado, onde chegara enfardado..”. (O Friburguense, 5-12-1895) Grifos meus. Era esse o sentimento dos friburguenses e dos brasileiros, ao final do século 19, em relação à maior parte dos imigrantes. Queixavam-se que recebíamos o “lixo” da Europa. Vigorava entre os brasileiros a máxima romana: hospes hostes, isto é, estrangeiros são inimigos. A Europa passava por uma crise de superpopulação. No plano econômico, os Estados Alemães ainda viviam, em linhas gerais, numa estrutura feudal, com exceção da Prússia. Recordemos que a Alemanha somente seria unificada em 1871. Antes disso, o território germânico era constituído por 39 Estados, divididos em diferentes reinos, ducados e cidades livres, que apenas tinham em comum a mesma a língua, o alemão, e a mesma cultura. Os Estados Alemães fizeram certa vista grossa sobre as ações de Schäffer em arregimentar mercenários, que era proibido. A contrapartida para essa indulgência foi obrigar Schäffer a levar cidadãos desocupados e criminosos dos Estados Alemães, como foi o caso do navio Germânia que despachou como soldados muitos presidiários de Mecklemburgo. Aliás, essa é uma prática muito comum na história da emigração na Europa. Portugal assim o fez em relação ao Brasil no período colonial, mandando a ralé lusitana para povoar a Colônia; a Inglaterra igualmente o fez quando colonizou a Austrália. Dos suíços que imigraram para Nova Friburgo, havia entre agricultores e artífices muitos criminosos que tiveram suas penas comutadas em degredo para o Brasil. Logo, era uma prática muito comum os países esvaziarem as suas prisões enviando a escória da sociedade, como colonos, às nações emergentes, constituindo uma política de verdadeira depuração nacional. Isso sem contar no envio de desocupados e mendigos que povoavam as cidades européias, todas com excesso de população e que passavam fome e privações. Possivelmente se Schäffer não tivesse aceitado incorporar entre os emigrados essa malta de criminosos e desocupados, dificilmente teria a liberdade de ação que teve junto aos Estados Alemães para contratar os mercenários de que carecia para formar o Regimento de Estrangeiros no Brasil.
D. Pedro I desejava soldados e não colonos. Esses soldados eram o que o Imperador necessitava para a Guerra da Independência, Cisplatina e sufocar rebeliões internas, pois quase todos os alemães daquela geração eram veteranos das guerras napoleônicas. No entanto, para cada grupo de soldados e oficiais vinha um grupo de colonos morigerados, mas também de criminosos, transformando-se esses últimos em um problema sério para o governo brasileiro. Os criminosos foram obrigados a assentar praça nas Forças Armadas, degenerando e contaminando o restante da tropa. A princípio, os brasileiros deveriam estar tecendo loas a esses mercenários alemães, pois abominavam o serviço militar, que retirava os braços do campo e viviam aporreados pelos oficiais. O recrutamento no Brasil não diferia das práticas dos europeus de apresar escravos na África, na base da violência e do engodo. Logo, por que os brasileiros passaram a hostilizar esses mercenários? Não faziam eles o que o brasileiro nato deveria fazer, servir às Forças Armadas de seu país, dar o seu imposto de sangue?
No papel de recrutador de mercenários Schäffer vinha contrariando o governo brasileiro. A título de disfarçar sua atividade ilegal, qual seja, de cooptar mercenários, proibido pelos Estados Alemães, estava trazendo colonos demais, o que não interessava ao governo brasileiro. Foram muitas as correspondências oficiais encaminhadas a Schäffer ordenando que trouxesse o mínimo possível de colonos e o máximo de soldados e oficiais. Mas a cada navio que chegava a proporção de colonos era grande, o que concorreu para a criação de inúmeras colônias de alemães pelo país. Nova Friburgo foi uma delas. Porém, entre os primeiros que chegaram ao Brasil vieram alemães morigerados
A CHEGADA DOS COLONOS
A VILA DE NOVA FRIBURGO:

A Imigração Alemã – Parte VI

 

Foram os colonos das primeiras expedições dos navios Argus e Caroline que se estabeleceram em Nova Friburgo. O primeiro navio trazendo cidadãos alemães, o Argus, chegou ao Rio de Janeiro em 07 de janeiro de 1824. Já o Caroline chegaria em 14 de abril do  mesmo ano. Quando o navio Caroline chegou ao Rio de Janeiro, os colonos do Argus ainda se encontravam em Niterói, nas instalações da Armação. Havia colonos demais nesses dois navios, a contragosto das autoridades brasileiras que desejavam soldados para o Exército Imperial. O Argus trouxe 134 colonos e 150 soldados. Já o Caroline 180 colonos e somente 51 soldados. As colônias de Frankenthal e Leopoldina, originariamente previstas para abrigá-los, na Província da Bahia, aparentemente não estavam ainda preparadas para recebê-los. Os soldados foram logo enviados para os quartéis, mas o que fazer com os indesejáveis colonos alemães? Sugeriu-se juntá-los ao Núcleo dos Colonos Suíços em Nova Friburgo. Como vimos em matéria anterior, Nova Friburgo era próxima ao Rio de Janeiro, tinha na ocasião muitas terras abandonadas pelos suíços e o “Núcleo dos Colonos” de Nova Friburgo precisava ser revitalizado. No entanto, o diretor da Colônia de Nova Friburgo escreveu a Monsenhor Miranda manifestando-se contra, enfatizando o absurdo que seria o assentamento dos alemães no “Núcleo dos Colonos”, que por possuir terras inférteis, já haviam sido abandonadas por muitos colonos suíços. Monsenhor Miranda se sensibilizou com essa argumentação, mas o Imperador não. E como diz o ditado, Roma faluta, causa finita, o que Roma fala é lei, em Portaria de 31 de março de 1824, o Imperador determinou “...transferir  os Colonos Allemães existentes actualmente na Armação da Praia Grande, para a Villa de Nova Friburgo, onde deverão fazer seu estabelecimento...”.
No entanto, os colonos alemães não desejavam ir para Nova Friburgo como lhes foi determinado. Possivelmente já tinham notícias de que as terras de Nova Friburgo eram pouco produtivas. Os colonos do Argus insubordinaram-se, negando-se a seguir para Nova Friburgo, por não ser o lugar para o qual lhes fora prometido por Schäffer. Jacob Heringer, ourives, foi o líder dos rebeldes alegando que em seu contrato estava destinado para o sul da Bahia. Essa afronta foi considerada como falta grave, de desobediência às ordens imperiais. O governo ameaçou cortar a alimentação dos colonos caso não partissem de imediato da Armação da Praia Grande(Niterói) para Nova Friburgo. Jacob Heringer foi expulso da colônia, mas tempos depois o Imperador, por clemência, reintegrou Heringer à colônia de Nova Friburgo.
Sob protestos, esses colonos seguiram para Nova Friburgo. Em 03 de maio de 1824 chegaram à vila de Nova Friburgo 342 colonos, 195 homens e 147 mulheres, sendo casados 128 e 214 solteiros. Para arrefecer as reclamações, um Decreto de 20 de abril de 1824 confirmou os subsídios por dois anos aos colonos alemães. Inicialmente foram-lhe dadas as terras abandonadas pelos suíços, que não eram muito próprias para a agricultura. O Imperador expediu ainda ordens para proceder à medição e divisão de novas terras, caso não fossem suficientes as abandonadas pelos colonos suíços. Quanto aos subsídios, sabemos que não eram pagos com regularidade ou apenas recebidos à custa de muitas rogativas junto à Câmara Municipal. Até 1829 chegariam ao Brasil 27 navios trazendo soldados e colonos alemães. Depois dos dois primeiros navios que chegaram, os demais colonos foram sendo instalados em outras regiões do país, mas nos limitamos ao Argus e Caroline por terem sido os que constituíram o núcleo colonial de alemães em Nova Friburgo e o primeiro no Brasil.
Constituíram o núcleo dos primeiros alemães em Nova Friburgo os seguintes varões: o pastor Sauerbronn, Grieb(Gripp), Junger, Schott, Muller, Berbert, Schwab, Eller,  Emmerich, Hennrich, Nanz, Kleinfelder, Spamer, Dörr, Zaubach, Döring, Diedrich, Kaiser, Klein, Schenkel, Reigel, Herrmann, Ott, Dautt, Drott, Scaneider, Schmidt, Urich, Neipert,  Nanz, Schwenck(Schuenck),  Winter,  Bröder(Breder), Meyer, Oberländer, Schmidt, Storck, Wolf, Höfel, Schott, Laubach(Louback), Gundacker (Condack), Schwab(Schuab) etc. Os colonos alemães das duas primeiras expedições, Argus e Caroline, consistiam na maioria de  agricultores, havendo ainda alfaiates, moleiros, vidraceiro, cordoeiro, sapateiro, relojoeiro, carpinteiro, telheiro, ourives, etc. Eram na maioria homens morigerados e nada miseráveis, como foram os suíços, pois pagaram as suas passagens, que era cara, e trouxeram muitas ferramentas de trabalho. Posteriormente, alguns mercenários que deram baixa no Exército Imperial, após servirem por seis anos, imigrariam para Nova Friburgo. Receberam terras e fizeram investimentos na vila, pois tinham direito a um pecúlio quando se desligavam da Armada. Entre eles os irmãos Leuenroth, ex-mercenários, que construiriam um dos mais importantes hotéis em Nova Friburgo no século 19. E quanto aos mercenários alemães? De que forma serviam no Exército brasileiro e como era a sua rotina nos quartéis do Rio de Janeiro?

O REGIMENTO DE ESTRANGEIROS:  

A Imigração Alemã – Parte VII

 

Provavelmente, se D. Pedro I não tivesse se preocupado em organizar as Forças Armadas Imperiais, a independência do Brasil não teria se consolidado e as províncias do nordeste teriam se tornado independentes do país. Para tanto, teve que recorrer a mercenários, pois as tropas nacionais tinham em sua base “vagabundos”, delinqüentes e mondrongos, recrutados através da violência. Quanto aos oficiais, todos portugueses, não desfrutavam da confiança do Imperador. O Regimento de Estrangeiros foi criado pelo decreto de 8 de janeiro de 1823, mas  ficou popularmente conhecido como Batalhão de Estrangeiros. Era constituído, em sua grande maioria, por mercenários alemães. Porém, mercenários irlandeses também integraram o Regimento de Estrangeiros, assim como suíços de Nova Friburgo. Mas foi com a chegada dos mercenários alemães em 1824, enviados por Schäffer, que o Regimento de Estrangeiros ganhou visibilidade e representatividade, já que os soldados alemães em tudo eram superiores aos estrangeiros anteriormente incorporados ao Exército. Podemos afirmar que os ingleses compuseram a Marinha e os alemães o Exército brasileiro. O Regimento de Estrangeiros teve como primeiro Comandante o francês Tenente-Coronel João Augusto Bellard, e segundo cronistas da época era mais negociante do que militar, envolvendo-se em negócios de terras em Nova Friburgo. Foi afastado do serviço ativo em 1825. O Regimento de Estrangeiros ganhou uma proporção tamanha que assustou as autoridades brasileiras. O Ministro da Guerra alertou o Imperador quanto ao perigo representado por uma grande unidade de mercenários no coração do Império. A solução seria dividi-lo em batalhões. Logo, o Regimento de Estrangeiros foi dividido da seguinte forma: dois Batalhões Estrangeiros de Granadeiros e dois Batalhões Estrangeiros de Caçadores. No Batalhão de Granadeiros, devido ao peso dos artefatos, eram escolhidos para compô-lo homens morrudos. Com o tempo, esses soldados granadeiros foram agrupados em tropas autônomas, uma tropa de elite, destinadas às missões de choque. O 2° Batalhão de Granadeiros foi escolhido para fazer a guarda do Palácio de São Cristóvão e proteção especial do Imperador e de sua família. Para esse batalhão eram destinados os alemães mais altos, fortes e de melhor aparência. Com os mercenários alemães vindos nos navios Argus, Caroline, Anna Louise e Germânia organizou-se as primeiras unidades mercenárias alemãs do Exército Imperial. A média de idade desses soldados era de 26 anos. Foram os mercenários alemães que lutaram na Guerra Cisplatina, juntamente com as tropas nacionais, numa interessante passagem de nossa história. Desde a chegada dos primeiros navios até 1829, foram destinados 3.000 alemães às colônias, 4.000 ao serviço militar e 1.000 cujo destino não há especificação. Sabe-se pelos quadros efetivos das unidades mercenárias alemãs, que apenas 3.000 soldados foram de fato incorporados ao Exército Imperial. Muitos subornaram as autoridades brasileiras e passaram à condição de colonos. No total de homens alemães adultos que imigraram para o Brasil, a proporção foi de para cada 3 soldados, havia 1 colono homem adulto. Essa proporção não agradou em nada as autoridades brasileiras que queriam bem mais soldados do que colonos, pois se desejava braços para o Exército e não agricultores para o campo. Somente os soldados tinham suas passagens custeadas pelo governo brasileiro. A princípio, aquele que custeara sua passagem ficava na condição de colono, mas há quem afirme que houve pressão sobre os colonos para que assentassem praça no Exército. Trazendo essa questão para Nova Friburgo, há o registro de que Peter Grieb(Gripp), 26 anos, assentou praça no Regimento de Estrangeiros. Irmão mais jovem do moleiro Balthasar Grieb, não seguiu com o irmão para Nova Friburgo. Teria sido forçado a assentar praça? Possivelmente sim, devido à sua idade e porte físico. O caso de Peter Grieb é objeto de controvérsia entre os autores Soares de Souza e Saldanha Lemos, que divergem quanto ao livre arbítrio que tiveram os colonos quando chegaram ao Rio de Janeiro. Para o primeiro, os colonos possuíam livre vontade sobre o seu destino, desde que tivessem pagado as suas passagens. Porém, Saldanha Lemos demonstra em “Os Mercenários do Imperador” que mesmo vindo na condição colonos, alguns foram obrigados a servir nas Forças Armadas. Conhecendo a história do recrutamento no Brasil, a “pau e a corda”, ficamos com Saldanha Lemos, pois o governo brasileiro desejava homens não para segurar uma enxada, mas uma espingarda de pederneira. Até meninos eram aproveitados nas bandas de tambores, pífaros, caixas-de-guerra e cornetas.    
O 26° Batalhão de Caçadores, devido às desordens que provocavam no Rio de Janeiro, ganhou dos cariocas a alcunha de Batalhão do Diabo, pois nas horas de folga tais soldados viviam bêbados, provocando arruaças e sempre envolvidos em pancadarias com a população. Era o terror dos negros e dos donos de bodegas. Porém, o Batalhão do Diabo gozava de uma especial simpatia do Imperador D. Pedro I devido às suas bem alinhadas evoluções militares e de sua lealdade. O Imperador se divertia com as estripulias desse batalhão. Era exatamente esse tipo de homem que o Imperador precisava. Para exterminar um foco remanescente do movimento insurrecional e separatista, conhecida por Confederação do Equador, iniciada no Recife em 1824 e que se espalhara pelas províncias da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, o Imperador pensou logo no Batalhão do Diabo. Missão dada, missão cumprida. O Batalhão do Diabo, fazendo justiça a sua alcunha, foi para Pernambuco e acabou com a rebelião, trucidando os rebeldes.

OS MERCENÁRIOS ALEMÃES
POR SCHLICHTHORST:

A Imigração Alemã – Parte VIII 


Entre os militares memorialistas sobre a epopéia dos mercenários alemães no Brasil, a exemplo de Theodoro Bösche em “Quadros Alternados”, consideramos o mais interessante o do alemão Schlichthorst, ex-oficial do Imperial Exército Brasileiro. Desembarcou no Rio de Janeiro em 14 de abril de 1824, servindo no período de 1824 a 1826, quando retornou ao seu torrão natal. Não gostava de Schäffer, lamentando ter sido engabelado por falsas promessas no Brasil. Schlichthorst era jovem e muito culto, uma espécie de dandy, e gostava de passear pelas ruas do Rio de Janeiro durante as suas folgas apreciando a natureza e principalmente, as mulheres. Visitou residências de cônsules, de negociantes, e foi devido a sua atenção especial para com as mulheres da casa, que nos legou interessantes observações sobre os papéis e o universo feminino na sociedade carioca do início do século 19. As suas memórias são uma deliciosa leitura e o seu galanteio para com o “belo sexo” nos diverte imensamente. Mas o que interessa aqui são os mercenários e é através de suas memórias, que conhecemos boa parte do que aconteceu aos seus conterrâneos no Brasil. Vale a pena reproduzir as próprias palavras de quem vivenciou o cotidiano dos mercenários do Regimento de Estrangeiros nos quartéis do Rio de Janeiro, no Primeiro Reinado. Faremos o mínimo de intervenção possível, colocando “entre chaves” apenas algumas observações para melhor compreensão do texto.
 Schlichthorst escreveu:
 “...Apesar de alistados em Hamburgo como colonos, no Rio de Janeiro eram imediatamente forçados a assentar praça. Só tinham liberdade para ir para onde quisessem os que haviam pago suas passagens; mas estes mesmos às vezes abandonavam suas colônias e voluntariamente se engajavam, sendo, nesse caso, reembolsados pelo Governo[pela passagem](...)Os oficiais vindos nesses navios de transporte, em parte se viam colocados na graduação que o Cavalheiro Schäffer lhes garantia em Hamburgo. Alguns, no entanto, ficaram decepcionados,[foi o caso de Schlichthorst que desejava servir na Marinha e não no Exército] o que se deve atribuir mais a desordem reinante no Ministério da Guerra do que a um engano proposital daquele Cavalheiro.(...) Sim, eu  próprio que, mais tarde, pude me enfronhar no modo de vida do país e conhecer o sistema de suborno nele reinante, sabendo como sei que no Brasil tudo se arranja com dinheiro(...)bastando-lhe aparência decente e alguns milhares de táleres [dinheiro alemão] para pagamento da patente(...) Para alimento dum soldado, o Governo escritura por dia meia libra de carne e meia de pão; mas(...)recebem tão pouco[carne] que suas refeições quase se limitam a arroz e feijão. Além disso, a carne que lhes dão é da pior qualidade, isto numa terra como o Rio de Janeiro, onde a carne já é ruim. O pão é feito na maior parte de farinha de milho, apesar de pago como de puro trigo. A maioria dos soldados o vende, para beber mais cachaça. Cozinham-se alternadamente duas vezes por dia, arroz e feijão. Não se varia o alimento. Serve-se o rancho sem o menor asseio. O oficial-de-dia tem obrigação de provar a sopa, sendo realmente preciso grande força de vontade para engolir esse caldo nojento. O mais pobre escravo vive melhor, sem dúvida, do que o soldado estrangeiro no Brasil.(...)O que, no entanto, torna ainda mais intolerável a situação do soldado é a falta absoluta de qualquer comodidade nos quartéis. Em parte, não há sequer tarimbas e os homens dormem pelo chão em esteiras, com um cobertor. Atormentados por incontáveis insetos, procuram na cachaça alívio ao seu martírio e curto esquecimento de sua desgraça.(...) Não é difícil imaginar os excessos a que diariamente se entregam. A conseqüência é uma pancadaria bárbara, sendo raro o dia em que se não apliquem castigos de 50, 100 e até 200 chibatadas, nas costas nuas dos infelizes(...)Os de natureza mais forte sentem uma espécie de orgulho em dizer que suportaram durante seu tempo de serviço alguns milheiros de vergastadas. Diante de um tratamento desses, não é de admirar que as deserções sejam freqüentes. Os que procuram o interior do país são logo agarrados[como os soldados presos em Nova Friburgo], porém, os que tentam escapulir por mar, raramente são descobertos (...)Castiga-se a deserção com 200 chibatadas nas costas nuas, dadas com finas vergastas de junco. Muitos as têm agüentado até quatro vezes, sem desistir de novas tentativas.....”
Referindo-se aos oficiais, Schlichthorst demonstra que passavam as mesmas agruras que os soldados rasos: “...a impossibilidade de viver decentemente sem procurar um ganha-pão secundário(...)os soldos dos oficiais, por mais importante que pareça de longe, não basta a cobrir as mais prementes necessidades(...) a maioria dos oficiais chega ao Rio de Janeiro sem dinheiro e, para se equipar, é obrigada a tomar grande adiantamento a ser descontado em seu futuro soldo. Como este geralmente não chega, caem nas garras de agiotas, que lhes adiantam o que têm a receber, cobrando juros....”. Schlichthorst deixa claro que todos esses problemas estruturais nos quartéis acabava minando a camaradagem entre os soldados, agravada pelo excesso da bebida alcoólica: a maldita cachaça.

OS COLONOS ALEMÃES
POR SCHLICHTHORST:

A Imigração Alemã – Parte IX

 

O alemão Schlichthorst, ex-oficial do Imperial Exército Brasileiro, que serviu no período de 1824 a 1826, nos deixou interessante registro sobre a situação dos colonos de Nova Friburgo e do sistema de distribuição de terras no Brasil. Não obstante o regime de sesmarias(doação de terras) ter sido extinto no Brasil em 1822, desconhecendo tal circunstância, Schlichthorst aconselha aos alemães que desejassem emigrar para o Brasil, como proceder para conseguir esse benefício. Schlichthorst nos relata a corrupção que havia para obter uma sesmaria e estranhamente elogia Monsenhor Miranda, considerado como um homem venal e “mulherengo”. Vamos conhecer então o relato que esse oficial alemão nos legou em suas memórias:
“A sorte dos colonos, em geral, não é melhor do que a dos soldados. Embora não se possa negar que o Governo lhes fornece muita coisa, pouco proveito auferem disso, porque as quantias destinadas a auxiliá-los são, na maior parte, furtadas pelos funcionários encarregados de sua distribuição. Deve-se, no entanto, proclamar, para glória do chefe do serviço de colonização estrangeira, que ele é, além de homem honesto, dono de excelente coração, fazendo o possível para melhorar a situação dos colonos e até grandes sacrifícios para ajudar a alguns soldados. Falta-lhe, porém, a energia precisa para coibir os abusos que penetraram pouco a pouco, desde o começo, num sistema, cujo fim principal era arranjar soldados para o Imperador. Como já fiz notar, todas as pessoas que vão para o Brasil à custa do Governo são feitas soldados logo que chegam, salvo se de todas inaptas para o serviço. Tiram-se, assim, às famílias seus braços mais capazes, mandando-se para as colônias apenas velhos e crianças. Os que pagaram as passagens do próprio bolso são livres. Fora disso não gozam de preferência alguma. O Governo paga a um colono 8 vinténs por dia, durante o primeiro ano após sua chegada. Às crianças, metade. Como por nova disposição de lei, esse dinheiro não é pago à vista, mas em gêneros alimentícios, a maior parte fica nos bolsos dos funcionários e de seus fornecedores. Se nas vizinhanças da cidade os colonos são miseravelmente alimentados, imagine-se o que não será essa alimentação a centenas de milhas de distância. Para o segundo ano, dá-se metade do auxílio do primeiro. Depois, tem de cuidar de si próprios. A colônia de Nova Friburgo fica a poucos dias de viagem da capital, mas os caminhos são tão ruins que os colonos não podem vir à mesma vender seus produtos.[refere-se a vender seus produtos no Rio de Janeiro] Reina ali tão grande pobreza que muitos assentaram praça voluntariamente ao se criar o Corpo de Estrangeiros e outros andam mendingando para poderem viver como párias.(...) Rastrilho e arado são desconhecidos no Brasil. A terra tem que ser trabalhada a enxada.(...)Tudo o que o Major von Schäffer, na sua obra sobre o Brasil, diz a respeito do gado e dos instrumentos agrícolas fornecidos aos colonos é inverídico. Quando muito, recebem uma enxada, um machado e um serrote para derrubar a impenetrável mata virgem que cobre geralmente a terra que lhes foi distribuída....”.
No Centro de Documentação de Nova Friburgo há uma representação do alemão “Gadermenn” junto ao diretor da Colônia que corrobora com essa última assertiva. Declara que sua terra era “cheia de mata” e que com sua mulher e 4 filhos pequenos não a poderia derrubar. Pediu para ser transferido para a Colônia de São Leopoldo, no sul.
As memórias de Schlichthorst finaliza com conselhos aos alemães que desejam emigrar para o Brasil:
“...Aconselho, todavia, a qualquer trabalhador hábil e diligente que queira fazer fortuna, que vá para o Brasil, pagando a passagem do próprio bolso, para não ser feito soldado ao chegar lá(...)Quem trouxer algum dinheiro para o Brasil também pode empregá-lo vantajosamente em bens de raiz. No caso de possuir uns 10 ou 20 táleres[dinheiro alemão], poderá arranjar com o governo uma sesmaria, que é como denominam as posses de terras doadas pelo Estado. Geralmente são do tamanho de uma légua quadrada. Os emolumentos do título de doação ascendem a uns 1.500 táleres. Com algum conhecimento da região onde a gente se quer estabelecer, empregam-se mais uns 1.000 táleres, para dar mais força ao pedido, e conseguem-se assim umas 5.000 geiras de terras excelentes.[note aqui o tráfico de influência dos funcionários públicos, através do recebimento de propinas, na concessão de sesmarias]. Parte do capital servirá para comprar escravos e levantar edificações muito singelas com abundante material tirado ao próprio terreno.(...) A lei determina que no prazo de 5 anos, a sesmaria deverá estar demarcada e ocupada, reservando-se ao Governo o direito de retomá-la se, dentro de 20 anos, não for cultivada[Na realidade, esse prazo era de 5 anos]. Estas duas condições obrigam ao emprego de todos os esforços para roçar a mata virgem, a fim de dar à posse de terra pelo menos aparência de cultivo....”
É interessante que, em outras recomendações dadas por Schlichthorst aos que desejam emigrar para o Brasil, a aquisição de escravos está sempre presente como meio de fazer fortuna.


A REBELIÃO DOS MERCENÁRIOS:

             A Imigração Alemã – Parte X


O quartel da Praia Vermelha, dos Barbonos e até o Mosteiro de São Bento serviram de instalação para os mercenários. Os prédios dos quartéis eram absolutamente insalubres e infestados por ratos, mosquitos, centopéias, escorpiões e bichos-do-pé. Era um inferno a vida na Fortaleza da Praia Vermelha onde as baratas roíam as fardas dos soldados. Tudo isso somado a minguadas refeições, má qualidade da alimentação, doenças como a febre amarela, acrescido dos maus tratos por parte dos oficiais, concorria para minar as forças físicas e o ânimo dos mercenários alemães. Nos quartéis havia ainda mercenários irlandeses, considerados os mais degenerados, onde o álcool concorria para agravar ainda mais o seu comportamento. Os irlandeses, a maioria agricultores miseráveis, chegaram ao Brasil em 1827 com as suas famílias, ludibriados pelo agenciador Cotter, que lhes prometeu terras e não fez referência direta ao serviço militar. Quando aqui chegaram, cerca de 310 homens foram levados forçados para quartéis imundos, sem alimentação, obrigando-os a mendigar pelas ruas sob o escárnio da população. Monsenhor Miranda não ajudou em nada para minimizar o sofrimento daquelas famílias, argumentando que sua atribuição limitava-se aos alemães. Daí a explicação para a entrega à bebida e à revolta por parte dos irlandeses. Nos quartéis do Rio de Janeiro uma rotina de taponas, bordoadas, cachações, palmatórias, cipoadas, chicotadas e pranchadas eram utilizadas para manter a disciplina dos soldados. Alguns castigos eram aplicados diante da tropa formada e com uma banda de música tocando retretas alegres para abafar os gritos do desgraçado castigado. Era uma cena dantesca. A ordem era não refrescar para manter a disciplina. Os soldos eram pagos com meses de atraso, chegando a atingir anos, e ainda vinham com descontos escorchantes. Logo, havia motivos suficientes para que um dia os mercenários se rebelassem. Há historiadores que afirmam que os argentinos, no qual o Brasil se encontrava em guerra pela posse do Uruguai, conspiraram dentro dos quartéis para provocar a rebelião dos mercenários. Afinal, eles faziam a diferença na guerra. No tocante aos castigos corporais não eram eles em si que revoltavam os mercenários, e sim, a arbitrariedade e o despotismo com que eram aplicados por parte dos oficiais. Um soldado alemão foi condenado a 800 chibatadas e chegou a agüentar 500. Como escreveu o ex-soldado alemão Schlichthorst em suas memórias, as costas dos mercenários eram “pasto da chibata brasileira.” Outro problema era que o comando dos soldados alemães estava nas mãos de outros estrangeiros. As autoridades militares do Império não atinaram que, um dia, a tolerância dos mercenários alemães iria terminar. A situação de tensão nos quartéis estava prestes a explodir e houve quem forneceu a pólvora.
Em 09 de junho de 1828, a revolta dos mercenários eclodiu quando um soldado foi condenado a centenas de chibatadas porque não se recolhera ao quartel ao cair o por do sol. Em meio a aplicação do castigo, mesmo com a tropa formada, surgiram vaias e imprecações por parte dos mercenários contra o português Major Drago. De repente, eclodiu no ar um grito de revolta: “Matem o cão português!”. A partir de então ninguém mais controlou os soldados que perseguiam os oficiais e matavam a todos que encontravam. Mercenários alemães e irlandeses se dirigiram para São Cristóvão e reivindicaram junto ao Imperador o fim dos castigos corporais, definição do tempo que estavam obrigados a servir e o pagamento dos soldos. No retorno ao quartel, como a cachaça e o vinho rolavam soltos, os mercenários embriagados surravam os brasileiros que encontravam pelo caminho. A revolta se estendeu por três dias com o assassinato de oficiais, destruição dos quartéis, casas derrubadas e assaltos a vendas e armazéns em busca de vinho e cachaça. O álcool ingerido descontroladamente há dias os transformava em uma turba furiosa e difícil de conter. E pior: não havia tropas nacionais disponíveis na Corte. A maior vítima dos mercenários eram os negros, mortos como moscas. Os negros devotavam ódio mortal aos soldados estrangeiros e a recíproca era verdadeira. Indignados com as agressões e assassinatos ao seu “patrimônio”, os senhores armaram seus escravos para que combatessem os mercenários. Nesse embate, o Rio de Janeiro virou palco de uma das maiores carnificinas de sua história. Os escravos armados na luta contra os mercenários foram igualmente cruéis, deixando cadáveres de soldados horrivelmente mutilados pelas ruas e muitos com sinais de tortura. O cego furor homicida e a crueldade nas execuções, uns contra os outros, eram praticados tanto pelos mercenários quanto pelos escravos. Somente quando as forças navais inglesas e francesas chegaram, por solicitação do Imperador, foi que os mercenários alemães e irlandeses se recolheram aos quartéis. É interessante que, nesse episódio, foram os escravos que de fato fizeram a diferença no combate aos revoltosos, mas quem recebeu as honras do governo brasileiro foram os franceses e os ingleses. Imediatamente o governo determinou que os escravos fossem desarmados por seus senhores. Realizados os julgamentos e punições, os mercenários foram enviados para bem longe do Rio de Janeiro, no sul do país, e o Regimento de Estrangeiros extinto. Em virtude dessa rebelião, uma lei de 1830 proibiu estrangeiros de envergarem o uniforme do Exército Imperial Brasileiro.

Nova Friburgo: A Colônia Mãe
dos Imigrantes Europeus

A Imigração Alemã – Parte XI

 

Como o espaço não permite observações, seguem trechos da carta do pastor luterano Sauerbronn a seus parentes na Alemanha. Sauerbronn chegou à Nova Friburgo em 1824, juntamente com os primeiros colonos alemães e nos legou interessantes observações sobre o cotidiano da vila de Nova Friburgo naquela época:
“...Um dia antes da chegada em Santa Cruz, à capital de Tenerife, fomos abordados por um pirata africano que tinha 100 homens e 36 canhões a bordo. A meio tiro de espingarda de distância, os homens do navio pirata carregaram seus fuzis; junto a cada canhão estava um homem  pronto a abrir fogo. O pirata com voz horrível mandou que baixássemos nossas velas. Depois ele se dirigiu a bordo, acompanhado por um único companheiro, ambos vestidos com um uniforme pitoresco. Ele viu nossos rostos assustados de medo e se convencendo que o nosso navio era um pobre transporte de colonos, mudou seu tom;  ofereceu-nos frutas como uvas, figos, laranjas, maçãs, como também vinho e aguardente. Após o susto, seguimos a viagem com alegria. Após a nossa chegada a Santa Cruz, soubemos que o mesmo pirata havia capturado um navio mercante um dia antes, em frente aos muros de Santa Cruz. (...) Chegamos ao destino em  janeiro de 1824(...).Os colonos chegaram a uma vasta área pertencente ao Imperador, chamada Armação[Niterói] e eu consegui com minha família uma casa excelente com livre alimentação junto a Monsenhor Miranda, Inspetor da Colonização Estrangeira, ocupando uma  posição de ministro. Ficamos três meses e meio por conta do Imperador e todos em dulce júbilo. O Imperador e a Imperatriz nos visitaram várias vezes; eram muito condescendentes e conversavam com cada criança. Dia 25 de abril fomos transportados por conta ainda do Imperador para aqui Nova Friburgo, 40 horas distante do Rio de Janeiro.(...) Durante este ano e meio[Sauerbronn já estava em Friburgo] cada família é obrigada a cultivar uma parte das terras e lá construir uma casa. Isto torna possível dentro de três meses que novos colonos encontrem moradia. Nova Friburgo é, portanto, a colônia mãe de onde os colonos europeus são distribuídos para outras terras.(...)No verão é muito quente mas o calor é suportável pois dura somente 12 horas por dia, as noites são mais frescas que na Europa. O inverno em Nova Friburgo não é fresco, mas frio, tão frio, tão frio que vi nas partes da manhã até as dez horas uma crosta de gelo na água e não me arrependi de ter trazido da Alemanha uma coberta de penas.(...) Vejo aqui ao lado do cafezeiro[cafeeiro] o que pode parecer impossível mas é a pura verdade. Pés de maçã ao lado de um limoeiro, uma cerejeira ao lado de batatas, deliciosos abacaxis e bananas ao lado de laranjeiras e videiras. Todos os legumes da Europa podem ser encontrados aqui. Temos ainda os produtos que os suíços cultivaram; o milho cresce bem e alimenta homens e animais; batatas de todos os tipos, beterrabas amarelas e brancas. Vê-se aqui o melhor trigo alemão, mas bem mais perfeito. Aveia e cevada não são cultivadas pela preguiça dos suíços. Cavalo, mulas, vacas, bois, suínos, ovelhas, patos, gansos, galinhas, perus e pombos se encontram de muito boa qualidade; todos são alimentados com milho. O gado se encontra todo o ano nos pastos e retorna normalmente duas vezes por dia à casa do dono para ganhar mãos de milho. A carne de boi não é tão boa como na Alemanha, mas a carne de porco é bem melhor e mais vigorosa; a de carneiro é pouco consumida, pois é tido como pouco saudável; a carne das aves é muito melhor do que na Alemanha. Caça exista aqui de várias espécies, mas muito menos do que na Alemanha, pois os animais selvagens se retiram das regiões cultivadas para o mato, onde não podem ser seguidos. Animais ferozes perigosos para o homem não existem e as cobras que causavam o maior medo à nossa chegada são muito raras. Eu vi até aqui agora somente duas; elas estão fugindo dos homens. Só morde se são pisadas, mas existem remédios infalíveis.
A videira se desenvolve bem aqui na colônia, mas os suíços somente a cultivavam em pomar. Todo o vinho consumido aqui provém da França e de Portugal; a cerveja é importada da Inglaterra. Até agora, ninguém tentou fazer cerveja aqui [Em 1861, Pedro Gerhart abriria em Friburgo a primeira fábrica de cerveja]. Ela é mais cara que o vinho, mas é muito consumida na capital. A bebida principal de todos os brasileiros é a cachaça a qual é destilada de cana e laranja e é muito barata. A garrafa vale 12 kronen. Esta bebida deve ser apropriada para este clima. Cada brasileiro tem normalmente algumas mulas e cavalos. Por falta de estradas tudo tem que ser transportado nas costas. Somente perto das cidades existem vias transitáveis. Todo resto são picadas ou atalhos que passam muitas vezes em cima de pedras grandes, mas facilmente vencidas pelas mulas e cavalos. Se os brasileiros têm de andar somente uma distância de 200 pés, montam a cavalo e andam galopando. As mulheres de todas as classes também montam a cavalo como os homens e vocês iriam ficar admirados vendo a minha Charlotte montar os meus dois garanhões.(...)Caso possam trazer 2 mil gulden vocês ganharão numa distância pequena de seis horas a Nova Friburgo fazendas já cultivadas, com gado e tudo que é necessário para viver; fazendas parcialmente plantadas as quais com o auxílio de dois escravos que aqui fazem tudo, dentro de um ano podem ficar completamente cultivadas. Eu conheço e forneço essas fazendas aqui em Nova Friburgo. Não nos falta nada, somente mãos para trabalhar. Por isso, quanto maior a família, mais rica ela será.” Nova Friburgo, 10 de setembro de 1824.

                  NOTICIAS DA COLÔNIA ALEMÃ
EM NOVA FRIBURGO

A Imigração Alemã – Última parte



As fases dos ritos de passagem, a separação, a liminaridade e a reintegração estarão presentes na trajetória dos imigrantes. O imigrante, a persona liminar, é um ser sem direitos que deve se submeter aos processos que irão transformá-lo em um novo ser, preparando-o ou modelando-o para enfrentar as situações de seu novo status, agindo conforme as prescrições do papel social que desempenhará. Muitos imigrantes transpuseram esses ritos de passagem. Sobrenomes como Gripp, Klein, Louback, Breder, Berbert, Schuenck, Emmerich, Condack, Schuab e Storck são remanescentes da primeira geração de colonos alemães que não seguiram a diáspora e permaneceram em Nova Friburgo. Os descendentes de suíços têm deixado uma vasta produção historiográfica com narrativas sobre a trajetória de seus ancestrais. Algumas, ainda que com pendor literário no estilo romance histórico, tendo por pano de fundo a saga dos colonos, não deixa de ilustrar a contento a vida desses imigrantes. Porém, não se tem notícia de que os descendentes dos primeiros colonos alemães tenham feito o mesmo, vindo a lume o que lhes resta de memória de seus antepassados.

As terras abandonadas pelos colonos suíços, e certamente de má qualidade, foram distribuídas entre os colonos alemães. Foram expedidas ordens para proceder à medição e divisão de novas terras caso não fossem suficientes as que se achavam abandonadas pelos colonos suíços. O prolífero pastor luterano Sauerbronn(1784-1864) foi fundamental para auxiliar espiritualmente os alemães e minimizar-lhes as dificuldades e agruras dos primeiros anos na vila de Nova Friburgo. Possuía a qualidade de um líder, sabendo impor-se diante dos seus e das autoridades brasileiras. Metade dos colonos alemães que imigraram para Nova Friburgo, seguiu o mesmo caminho anteriormente trilhado pelos suíços. Dirigiram-se para Macaé de Cima, Cantagalo, Barra Alegre, Rio Bonito e outras localidades em busca de terras mais férteis. Alguns migraram para a colônia de São Leopoldo, no sul do país, de onde vinham notícias de que as terras eram melhores. Como somente poderiam fazê-lo com autorização do Imperador, há diversos pedidos de transferência no Centro de Documentação de Nova Friburgo. Dois alemães, Leithold e Rango, que estiveram no Brasil por ocasião da instalação da colônia dos suíços, em Nova Friburgo, escreveram: “Só poderá ser um desastre!” Por outro lado, o alemão Hanfft, assessor de Schäffer, visitou a vila Nova Friburgo, em 1826, e fez o seguinte relatório sobre os colonos alemães:

“...Ali passei muitos dias. O terreno desta colônia é péssimo, e por esse lado ela é particularmente censurada. Contudo achei aquela boa e laboriosa gente mui satisfeita, morando em casas cômodas, possuindo bom gado, a alguns até senhores de escravos, em maneira que ninguém mostrava desejos de deixar a sua nova pátria, tanto mais que o governo tinha publicado a tempos que qualquer que achasse o seu terreno[terras] pouco ou mau, escolhesse outro melhor ou maior. Muitas famílias possuem tantas terras e tão férteis, que os seus filhos e netos jamais chegarão a cultivá-las....”
As datas de terras sáfaras e pouco produtivas, distribuídas aos colonos, provocou a diáspora de suíços e alemães para outras regiões, como vimos. Mas muitos colonos que permaneceram se transformaram em cidadãos prósperos, conforme relato de Hanfft. Uma pesquisa realizada sobre as licenças e passes expedidos aos alemães para se ausentarem temporariamente da colônia, denotam que muitos tinham negócios na Corte e cidades vizinhas. Alguns ex-mercenários migraram para Nova Friburgo. Friedrich Gustav Leuenroth(1800-1880), mercenário que serviu no Batalhão de Estrangeiros, depois da dar baixa no Exército, migrou para Nova Friburgo inaugurando a primeira casa de banhos na vila. Posteriormente construiu um hotel, o Hotel Leuenroth, onde se hospedava D. Pedro II quando vinha a Friburgo. Anos mais tarde, Carl Friederich Engert se casaria com a filha de Leuenroth e abriria mais um hotel, o Hotel Engert, um dos mais freqüentados pela elite carioca ao final do século 19. Outros mercenários também vieram para Nova Friburgo: Paul Leuenroth(hoteleiro); Johannes Brust(tanoeiro e cervejeiro); Gottlob Friedrich Orberländer(marceneiro); Adalbert Pockorny; Johann Kehr(ferreiro e agricultor); Heinrich Albert Köhrenkamp(marceneiro e agricultor); Franz Anton Reiff, do Batalhão de Caçadores; Johann Daniel Schwab(sapateiro e agricultor) do Batalhão de Granadeiros; Jacob Winter, do Batalhão de Fuzileiros; Johann Jacob Wolf(alfaiate e agricultor), sargento do Batalhão de Granadeiros, entre outros. Nomes como Braune e Beauclair, alemães que imigraram depois da primeira leva de colonos, foram famílias importantes em Nova Friburgo. Albano Beauclair instalou, em 1893, uma importante cervejaria, fabricando a famosa cerveja Friburgo Brau, além de um biergarten, na entrada da cidade.

Voltando a primeira matéria dessa série em que descrevemos a prisão de cinco mercenários alemães desertores, e sua fuga em Nova Friburgo, acredito que demos conta nesses dez capítulos em explicar o que faziam esses soldados alemães na vila, nos idos de 1825. D. Pedro I, o Imperador-soldado, provavelmente amava o Regimento de Estrangeiros que criou. Sua simplicidade o tornara querido do povo e seu garbo militar, das tropas. No seu leito de morte, pediu que em seu enterro não houvesse exéquias reais. Queria ser enterrado em caixão de madeira simples, como um soldado. Os mercenários alemães que chegaram ao Brasil lutaram na Guerra Cisplatina, colaboraram com a consolidação de nossa independência e ajudaram a evitar a separação de nossas províncias. Logo, na história da imigração no Brasil, devemos descartar o velho provérbio romano que prevalecia na mentalidade dos brasileiros, no século 19: hospes hostes, ou seja, estrangeiros são inimigos.

Estas e outras histórias estão no livro: "Histórias e Memória de Nova Friburgo."